23 maio 2009

DE NOVO A BARBÁRIE



Viana fez o que na Póvoa se desprezou


1. Tenho a convicção de que o humanismo nada tem a ver com uma visão antropocêntrica da vida que, não raramente, degenera no desrespeito pela Natureza e pelos outros seres vivos. Neste contexto ideológico entendo que o uso de animais em espectáculos e eventos públicos de carácter meramente lúdico, para gáudio de multidões eufóricas, resulta num acto gratuito e abusivo que em nada contribui para a dignificação da pessoa. A violência exercida sobre os animais é uma atitude retrógrada por fingir ignorar-lhes a possibilidade da dor, não se coibindo de a provocar por puro divertimento.
2. Na tarde de 17 de Março de 2008, dando cumprimento a essa convicção pessoal e ao compromisso político assumido no programa eleitoral de que fui rosto, defendi em reunião do Executivo Municipal uma “Moção a Favor da Declaração Municipal Oficial e Simbólica da Póvoa de Varzim como Cidade Anti-Touradas”.
Nos dois dias que antecederam esta acção recebi cerca de duas centenas de manifestações de apoio, de diversas localidades de Portugal e do Estrangeiro, de muitas organizações de defesa dos animais, de algumas cidades Anti-Touradas e de um número incontável de pessoas em nome pessoal.
O objectivo não era apenas acabar com as actividades taurinas, mas também transformar o edifício numa Praça do Engenho e da Arte, integrando um centro de interpretação ambiental, clubes de investigação (Matemática, Física e Química, Energias Alternativas…), espaços de produção de artes plásticas, oficinas de artes do espectáculo e de criação literária (dando continuidade às Correntes de Escrita), a realização de espectáculos e eventos ao ar livre, uma loja de Comércio Justo para promoção de Artigos da Terra (valorizando os produtos hortícolas locais e promovendo uma feira semanal de produtos de agricultura biológica) e um restaurante vegetariano. Num protocolo a estabelecer com a rede escolar local, a sua gestão poderia vir a ser desempenhada por jovens universitários com apoio técnico do Município.
A Praça de Touros fora adquirida pelo Município há mais de vinte anos. Era então membro da Assembleia Municipal e votei a favor dessa aquisição. Aparentemente, na Póvoa, seria fácil dar o passo seguinte: acabar com touradas, garraiadas e afins.
3. Na tarde de 17 de Março, a Póvoa de Varzim poderia ter sido pioneira em Portugal de uma atitude ética na defesa dos animais, poderia ter sido a primeira cidade Anti-Tourada de Portugal, seguindo o exemplo de cidades francesas e das quarenta e duas de Espanha, entre as quais Barcelona.
Todavia, numa atitude incompreensível, a maioria no poder decidiu manter a Póvoa como palco de violência gratuita sobre animais utilizados abusivamente para mero divertimento de insensíveis espectadores.
Dos que se negaram a compreender os sinais dos tempos esperava-se que, no mínimo, tivessem a honestidade intelectual para fazer a análise da proposta, considerando as respectivas vantagens e inconvenientes e que tivessem abertura para a debater. Em vez disso, a Moção foi rejeitada sem que tenham sido apresentados quaisquer argumentos substantivos para tal.
4. A tacanhez de tal postura diz bem do estado de civilização. Indiferente à força dos argumentos e fechados sobre os seus preconceitos, esta gente recusa compreender o Presente e atrasa o Futuro.
No país vizinho, tido por berço da tradição tauromáquica, sondagens realizadas em 2006 indicavam que 72% dos espanhóis declaram não ter qualquer interesse nas touradas. Em Portugal, estudos de opinião realizados em 2007 indicavam que 50,5% dos portugueses declaram querer que as touradas sejam proibidas por lei em todo o país, e que 52,4% pretendem que as cidades e vilas em que residem sejam declaradas Cidades e Vilas Anti-Touradas pelos respectivos Municípios, através da implementação de compromissos municipais de proibição da realização de touradas nos concelhos que administram. Esta posição é ainda mais expressiva na região do Grande Porto, onde 73,6% dos habitantes declaram querer que as touradas sejam proibidas por lei em todo o país, e 77,8% pretendem ver as cidades e vilas em que residem a declararem-se Cidades e Vilas Anti-Touradas.
5. Há algum tempo atrás, com epicentro em
Viana do Castelo, a esperança voltou a ter cor. Quase um ano depois da iniciativa que cá foi rejeitada, a Câmara da Princesa do Lima comprou a praça de touros local e decidiu acabar com as touradas. Pouco depois declarou-se publicamente Cidade Anti-Touradas.
Segundo foi noticiado, o Município de Viana foi inundado por manifestações de regozijo e de parabéns vindos de todo o mundo. O presidente Defensor de Moura disse que nunca tinha sido tão felicitado por uma decisão e contou que, depois de alguma contestação inicial por parte de aficionados, o fim das touradas em Viana do Castelo se afigurou, afinal, como uma das medidas "mais populares" que havia tomado desde que lidera o executivo local.
Defensor de Moura considera que "no século XXI é uma atrocidade continuar a sacrificar animais em público daquela maneira".
A Praça de Touros de Viana será transformada num Museu de Ciência Viva, de forma a aproveitar a proximidade ao Parque Urbano, onde funciona o Centro de Monitorização e Interpretação Ambiental.
6. Depois de Viana do Castelo, também Braga, Sintra e Cascais se assumiram em defesa dos direitos dos animais, passando a proibir espectáculos de tourada e afins.
Os jovens da Comissão de Estudantes da Universidade do Porto deveriam estar na linha da frente da defesa dos animais. Mas, pelo contrário, voltaram este ano a repetir o pedido de apoio e a organizar uma festa que não dignifica essa parte da elite pensante do país.
Hoje, domingo, na Póvoa volta a acontecer uma garraiada integrada na Queima das Fitas e subsidiada com o erário municipal. Por unanimidade, o Executivo voltou a usar de forma insensível e arbitrária os bens comuns para promover a barbárie!
Não sei o que vai passar-se hoje, mas na garraiada de 2007 um animal assustado, obrigado a estar onde não queria, foi sujeito de forma hostil a fazer o que outros lhe impunham e morreu precisamente às mãos de estudantes de Ciências de Saúde; aprendizes sem alma, que um dia nos tratarão o físico, mas que vão treinando o desprezo pela dor alheia por puro divertimento.
Nesse dia, a falta de vergonha percorreu as bancadas, indiferente ao frémito da dor e ao sangue que jorrou na arena, num regresso à escuridão da barbárie.
7. Fica a certeza de que é tudo uma questão de tempo!
A luta pela defesa dos Direitos dos Animais, consagrada pela Organização das Nações Unidas (ver a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada pela Unesco, em Bruxelas, no dia 27 de Janeiro de 1978), e protagonizada por inúmeras associações e incontáveis pessoas, há-de conseguir resultados positivos e definitivos, designadamente acabando com as touradas e eventos similares.
É tempo de um novo desiderato! A História, cada vez mais liberta de uma visão antropocêntrica, corre a favor da ideia de que partilhamos a Terra com outros seres vivos que urge respeitar.
Acredito que se juntarão boas vontades para uma caminhada de vanguarda, em que seja adoptada uma nova atitude assente nos valores da ecologia profunda.
Mais cedo ou mais tarde a Póvoa de Varzim será também uma cidade que respeita os animais.
Desse modo cumprir-se-á o Homem.

artigo de opinião publicado no jornal "O Comércio da Póvoa", edição de 2009.05.21


7 Comments:

Blogger Othelo said...

Não me pretendo pronunciar sobre o fim do espectáculo das touradas por entender que, havendo em Portugal pessoas que fazem desse espectáculo modo de vida, e outros que realmente gostam de o ver, em desprezo pela dor dos animais. Entendo que esse assunto deveria, por se tratar de uma tradição secular, ser objecto de referendo nacional e não por imposição de grupos que defendem a sua extinção.
Já no que diz respeito à praça de touros desta nossa cidade, concordo plenamente com a ideia do autor deste blogue. Afinal, temos um equipamento que não usamos minimamente e que agora querem "tapar" com uma barreira de edifícios. Parece que a cidade tem vergonha de ter uma praça de touros onde se praticavam espectáculos de violência para com os animais.
A mim, faz-me muita impressão ter um edifício daqueles sem nenhuma ocupação, quando nesta terra as carências de ordem cultural são gritantes. Esta cidade não tem uma sala de espectáculos digna desse nome. Não temos teatro nem cinema.
Termino lançando um pequeno repto. Com o devido respeito pelas decisões tomadas pelo autor em abandonar a vereação, cargo alias, que apenas lhe permitia ser a voz dissonante nas assembleias municipais. Gostaria de desafiar o autor a promover uma candidatura independente à câmara municipal. Não faço este repto por desrespeito ou mal intencionadamente, mas vejo em si a voz e leio no que escreve as bases necessárias para o lançamento de uma candidatura séria e inteligente que poderá levar esta cidade para novos rumos, longe do marasmo em que está metida por sucessivos executivos incompetentes, para dizer o minimo. Da minha parte, conta com o meu apoio incondicional para o prosseguimento dessa candidatura, certo de que não serei caso isolado.

23 maio, 2009 10:45  
Blogger IN VERITAS said...

torna-se dificil distinguir uns de outros animais...dada a sua mútua irracionalidade

23 maio, 2009 14:45  
Anonymous Anónimo said...

Excelente Post.

24 maio, 2009 12:45  
Anonymous Anónimo said...

Caro arquitecto, tambem sou defensor dos direitos dos animais e não acho justo que o próprio dono do animal vá apanhar o seu "cagalhão" quando este ainda fumega. Imagine-se na posição do seu animal. Se fosse eu, ... ... mordia-lhe.
José tinoco

24 maio, 2009 16:45  
Blogger Manuel CD Figueiredo said...

"Quando se educa crianças, não queremos só mostrar-lhes que um tigre tem pêlo e quatro patas. Esperamos passar-lhes valores de integridade, respeito ambiental e consideração pelo sofrimento alheio".
Isto escreveu a Bióloga Leonor Galhardo (Público, 25.05.2009), num interessante artigo sobre o sofrimento dos animais nos circos, e que alarga o âmbito da barbárie aqui tratada. Exige reflexão.

Depois de ler o artigo, recomendaria às crianças que levem os pais ao circo, ao circo que as crianças adoram. É tempo dos adultos aprenderem, com elas, normas de civilização.

26 maio, 2009 11:18  
Blogger Othelo said...

http://penedodaforcada.blogspot.com/

Ouçam o que o penedo vos tem para dizer...

30 maio, 2009 15:26  
Anonymous Milhazes said...

Sobre Touradas teremos muitas opiniões, mas deixem-me ter a minha.
E vou manifestá-la à Poveiro; «quem não gosta não come». Mas deixem-me comer viver e ver aquilo de que gosto.

12 junho, 2009 19:30  

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